O fim da cultura e o novo mundo de Oliver Roy
Toda cultura reflete um imaginário, um sistema de crenças que não apenas oferece sentido, mas também permite que este crie raízes e seja compartilhado
*Publicado originalmente no medium em 2024
Oliver Roy é um cientista político francês cuja trajetória intelectual está ligada à compreensão dos efeitos da globalização sobre as religiões, especialmente o islamismo. Analista dos mais perspicazes, ele chega a 2024 com uma abordagem ainda mais conectada aos novos tempos e voltada para a cultura como um todo. Seu novo livro, The Crisis of Culture: Identity Politics and the Empire of Norms, ainda sem tradução no Brasil, apresenta teorias que explicam como determinadas forças estão minando a cultura ao torná-la mais transparente e direta, ou “tokens” prontos para serem trocados e exibidos.
A cultura existia por si só. Agora, é algo que praticamos para nos posicionar em relação a outras pessoas.
Embora essa ideia pareça óbvia, os caminhos que Roy utiliza para chegar até ela não são, e eles nos trazem clareza sobre como vivemos hoje. Na verdade, é uma jornada que pode ser organizada em quatro grandes argumentos e o fio condutor deles são situações do nosso cotidiano, tanto as banais quanto as complexas.
O autor fala sobre culinária, música, política, cinema, questões identitárias, economia, viagens, natureza, hábitos e aspirações. Tudo isso sem perder o fôlego ou recorrer às opiniões desgastadas que vemos por aí.
Mas vamos aos pontos:
(1) A “deculturação” das sociedades (não confundir com aculturação):
Esse é o ponto de partida das ideias de Roy. Estamos testemunhando não a substituição de uma cultura dominante por outra, como ocorreu durante a expansão do Cristianismo ou em períodos como o Iluminismo, mas sim a erosão progressiva da cultura, tanto de uma perspectiva antropológica quanto de patrimônio.
E o que vem no lugar é um sistema de códigos mutável, o desaparecimento de espaços comunitários (via guetização dos pobres e comunidades fechadas para os ricos); o desaparecimento de grandes ideologias; o desenvolvimento de subculturas que são colchas de retalhos de elementos de várias culturas, a desconexão dos marcadores de identidade de seu contexto cultural original (por exemplo, o véu islâmico em países ocidentais não é simplesmente uma ‘prática tradicional’, mas também uma escolha em busca por autonomia política); a dominação do ideal neoliberal, que valoriza o sucesso em vez do trabalho criativo e uniformiza os estilos de vida em torno do consumo.
(2) Normas explícitas tomam o lugar das ideias implícitas
Com a perda desse senso de coletividade, o que era óbvio deixa de ser e a comunicação precisa se tornar mais direta e clara. Um dos exemplos que ele trouxe, e eu adorei, conta sobre uma crise na United Airlines desencadeada por que um passageiro achou de bom tom levar um pavão de suporte emocional em um dos voos e foi barrado. Em outros tempos, isso seria inimaginável e a cultura implícita do que pode ou não pode em um avião prevaleceria. Mas o lugar dos animais mudou na sociedade e as empresas precisam levar essas novas variáveis em consideração.
Para explorar este ponto, Roy traz elementos da linguística como emojis, tradução automática, conversas sobre consentimento e a expressão de identidade política nas mídias sociais, cada vez mais urgente. Sobrou pouco espaço para nuance e a pergunta que fica é se essas normas são suficientes para a sociedade funcionar.
(3) A crise do humanismo e da intimidade:
No passado, as pessoas encontravam significado em ‘grandes ideologias’ — Cristianismo, Marxismo, no american lifestyle — ou baseavam suas existências nos hábitos de uma sociedade tradicional. Mas ‘nem a alta cultura nem a cultura antropológica fornecem o material dos sonhos hoje’, ele escreve. Agora, as crenças são representadas pelas subculturas; elas estão presentes em seitas, fandoms, teorias da conspiração e similares. O que entendemos como sociedade se tornou um projeto de maximizar a liberdade e a felicidade.
O problema é que não conseguimos nem concordar com o que é ser livre, por exemplo: Queremos ser livres para dizer qualquer coisa, ou livres do discurso de ódio?
(4) A despolitização das controvérsias e da mobilização de protestos sociais:
Debates e mobilizações de protesto estão mais voltados para questões de identidade do que socioeconômicas. E aqui, Roy abre espaço para infinitas discussões sobre a fragmentação do discurso político e a dificuldade de construir coalizões para a verdadeira mudança social. Um ponto que chama atenção é o aumento do número de contratos autônomos, os famosos “pejotinhas”, que substituem os salários fixos, negociados em sindicatos. A tendência que ele apresenta aqui é a do sofrimento individualizado em detrimento das batalhas coletivas.
O livro tem uma tendência pessimista, mas é provável que as ideias contidas nele comecem a surgir nos PPTs das agências de publicidade, reorganizadas para vender produtos ou “criar conexões entre marcas e pessoas”. Seria a ironia final. Da minha parte, acredito que a cultura está morrendo, mas abrindo espaço para múltiplas formas de existir, mais interessantes e inspiradoras. Mas aí você, leitor, pode me considerar uma otimista.